Carro autônomo: futuro ou presente (quase) imediato

Por quase um século, o sonho de um veículo autônomo cativou engenheiros e inventores. Já na década de 1920, o americano Francis Houdina surpreendeu Nova York com um carro controlado por rádio, enquanto em 1939, a General Motors vislumbrou rodovias onde os carros se guiariam sozinhos em sua exposição Futurama. Durante as décadas de 1950 e 1960, os primeiros testes com carros controlados remotamente ou guiados por fios mostraram que a ideia poderia se tornar realidade.
O primeiro grande avanço ocorreu na década de 1980 , quando o engenheiro alemão Ernst Dickmanns possibilitou que um veículo dirigisse de forma autônoma usando câmeras e processamento de imagens. Pouco depois, o projeto europeu Prometheus (Programa para um Tráfego Europeu de Máxima Eficiência e Segurança Sem Precedentes) levou a condução autônoma para as estradas reais com a Mercedes-Benz — após testes bem-sucedidos realizados por Ernst Dickmanns e sua equipe na Universidade da Bundeswehr em Munique — utilizando os VaMoRs (Veículos Experimentais para Mobilidade Autônoma e Visão Computacional, ou Versuchsfahrzeug für autonome Mobilität und Rechnersehen). Esses testes permitiram que um Classe S modificado percorresse centenas de quilômetros em rodovias europeias sem intervenção humana, atingindo velocidades de até 130 km/h na maior parte do tempo.

A partir dos anos 2000 , os avanços em inteligência artificial (IA) e sensores aceleraram a corrida. A competição DARPA Grand Challenge (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa) nos Estados Unidos impulsionou o desenvolvimento de sistemas cada vez mais precisos e seguros, tornando-se um terreno fértil para as grandes empresas que viriam a seguir, como Waymo (Google), Baidu e Tesla , que estão liderando a nova era da direção autônoma.

A Sociedade de Engenheiros Automotivos (SAE) classifica a direção inteligente em cinco níveis:
Nível 0 / Sem automação: O motorista é totalmente responsável por todas as tarefas de condução.
- Nível 1 (L1) / Assistência ao condutor: O veículo é controlado pelo condutor, mas pode incluir algumas funções de assistência (por exemplo, direção ou frenagem).
- Nível 2 (L2) / Automação Parcial: O veículo combina funções parcialmente autônomas, como aceleração/frenagem e direção, mas o motorista deve permanecer totalmente envolvido nas tarefas de condução e monitorar o ambiente.
- Nível 3 (L3) / Automação Condicional: O condutor é obrigado a estar preparado para assumir o controlo do veículo a qualquer momento, mediante aviso prévio, embora não precise de monitorizar constantemente o ambiente.
- Nível 4 (L4) / Alta automação: O veículo é capaz de executar todas as funções de condução sob certas condições. O condutor pode optar por assumir o controlo.
- Nível 5 (L5) / Automação Total: O veículo pode executar todas as funções de condução em todas as condições. O condutor pode ou não ter a opção de assumir o controlo.
A condução autônoma sem motorista já está ultrapassando a fronteira entre os testes-piloto e a comercialização em larga escala, tornando-se um dos motores econômicos e sociais mais disruptivos da próxima década, de acordo com o relatório do Bank of America (BofA) Institute, "The road ahead: The future of autonomous vehicles" (O caminho à frente: O futuro dos veículos autônomos) , que destaca três fatores-chave para essa trajetória: o impulso da inteligência artificial generativa; a queda nos custos tecnológicos; e a avalanche de investimentos globais.
Uma revolução em andamentoA transformação é profunda e só tende a se intensificar. Mais de 120 programas de robotáxis estão atualmente em operação no mundo todo, impulsionados por 32 empresas, segundo a BloombergNEF . Sete delas já oferecem serviços comerciais seguros e sem motorista, principalmente nos Estados Unidos e na China . Em cidades como São Francisco, Phoenix, Shenzhen e Wuhan, milhares de passageiros viajam diariamente em veículos totalmente autônomos, enquanto gigantes da tecnologia e fabricantes tradicionais competem para liderar um setor que poderá valer US$ 1,2 trilhão até 2040, de acordo com o Bank of America.
A mudança de paradigma baseia-se em três pilares: hardware mais barato, software mais inteligente e modelos de negócios escaláveis.
O custo do hardware para robotáxis na China, por exemplo, foi reduzido em mais de 50% em poucos anos, e a eliminação do motorista reduz o preço por quilômetro em 52%, de acordo com cálculos do Bank of America Institute, de modo que a equação econômica começa a fechar.

Os Estados Unidos representam o ambiente mais permissivo. A NHTSA delega a maior parte do licenciamento aos estados, o que permitiu que empresas como Waymo (Google), Cruise e Zoox operassem comercialmente na Califórnia, Arizona e Texas. Em 2025, Washington atualizou sua Estrutura de Veículos Autônomos para acelerar as implantações e fortalecer sua posição contra a China. O resultado é um laboratório nacional a céu aberto, onde a regulamentação acompanha a inovação, embora a coordenação federal permaneça frágil e as regras de responsabilidade variem de estado para estado.
A Europa, por sua vez, está progredindo mais lentamente, mas com uma estrutura legal sólida. A União Europeia aprovou o Regulamento (UE) 2022/1426 em 2022, que estabelece as bases para a homologação de veículos automatizados de Nível 4. A Alemanha foi pioneira com a Lei de Condução Autônoma de 2021, que autoriza veículos sem condutor em áreas designadas. França, Suécia e Espanha seguiram passos semelhantes, e o novo Regulamento da UE sobre Inteligência Artificial (Lei de IA) de 2025 incorpora disposições específicas sobre segurança algorítmica, transparência e gestão de riscos na mobilidade autônoma. O Velho Continente busca combinar inovação com salvaguardas éticas e de proteção de dados, embora a burocracia e a fragmentação entre os países estejam atrasando a adoção comercial em larga escala.
A China tornou os veículos autônomos uma prioridade nacional. O governo central está promovendo zonas piloto em Wuhan, Shenzhen, Chongqing e Pequim, onde empresas como Baidu (Apollo Go) e Pony.ai já oferecem serviços de robotáxis sem operadores humanos. As regulamentações estão sendo atualizadas continuamente e de forma coordenada, com o apoio do Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT). O país lidera em termos de volume de dados e rapidez na aprovação comercial e busca exportar seu arcabouço legal para outros mercados emergentes.
Nas palavras do relatório do Bank of America, a competição tecnológica global está se transformando em uma verdadeira "guerra pela autonomia".
O modelo de seguros também mudará à medida que os veículos autônomos ganharem terreno. Quando o "motorista" for o software, a responsabilidade recairá sobre os fabricantes e desenvolvedores, e não sobre o usuário, redefinindo o papel do seguro: de proteger o motorista para assegurar o algoritmo. As seguradoras já estão explorando apólices híbridas que cobrem tanto riscos cibernéticos quanto falhas de sistemas autônomos.
O Bank of America identifica uma nova fase no desenvolvimento de veículos autônomos (VAs): o salto da autonomia baseada em regras (VA 1.0) para a autonomia generativa baseada em IA (VA 2.0).
Até recentemente, os sistemas dependiam de múltiplas redes neurais que executavam tarefas separadas — ou seja, percepção, planejamento, controle — e agora, a IA generativa permite um único modelo de ponta a ponta capaz de transformar diretamente os dados dos sensores em decisões de direção.
Essa abordagem, semelhante ao salto que o ChatGPT representou para os sistemas de linguagem, promete carros mais adaptáveis, capazes de aprender com ambientes em constante mudança e tomar decisões contextuais mais semelhantes às humanas.
Para se ter uma ideia, cada veículo autônomo de teste gera cerca de 32 terabytes de dados em 6 horas, e os centros de dados precisam aumentar sua capacidade de processamento em dez vezes para treinar os modelos. O relatório alerta que os veículos autônomos estão se tornando, literalmente, supercomputadores sobre rodas.
A corrida do hardwareOs sensores – radares, câmeras e lidar (sistemas de detecção de luz laser e medição de distância) – são os olhos do carro autônomo.
O mercado global de sensores para veículos autônomos ultrapassou US$ 75 bilhões em 2024, e seu custo é atualmente cerca de nove vezes maior do que o dos sistemas avançados de assistência ao condutor (ADAS). Mas os avanços em inteligência artificial e integração de hardware podem reduzir essa diferença.
A tendência sugere que os novos veículos de alta gama já incorporarão os componentes necessários para permitir uma autonomia avançada, sem necessidade de adicionar equipamentos adicionais.
Além dos carrosEmbora as manchetes se concentrem em carros, os maiores avanços estão, na verdade, ocorrendo em caminhões, ônibus e máquinas industriais.
Os veículos autônomos já estão em operação em minas e atividades agrícolas, com aumentos de 30% na produtividade e reduções de 50% nos custos de mão de obra.
Segundo o Bank of America, a escassez global de motoristas — 3,6 milhões de vagas — que pode dobrar até 2028, reforça o apelo da automação. No Japão, por exemplo, a idade média dos taxistas é superior a 59 anos; na Europa, a dos caminhoneiros é de cerca de 47 anos. Sem perspectiva de uma geração que os substitua, os veículos autônomos oferecem uma solução tecnológica para um problema estrutural, no qual os caminhões autônomos, em particular, estão avançando rapidamente.
Existem 90 projetos-piloto, dois terços dedicados ao transporte de longa distância, e sete já estão próximos da comercialização, um modelo de negócio emergente que combina serviços de assinatura ou pagamento por quilômetro (motorista como serviço) com frotas gerenciadas por fabricantes e parceiros logísticos.

O Bank of America estima que, somente entre 2023 e 2024, os investimentos em empresas de veículos autônomos triplicaram, atingindo quase US$ 9 bilhões. Desde 2010, mais de US$ 200 bilhões foram investidos em cerca de 600 empresas do setor, e perto de US$ 1 trilhão se incluirmos tendências associadas, como mobilidade conectada, elétrica e compartilhada. Tudo isso reflete o foco do capital de risco na autonomia como a nova fronteira competitiva da IA aplicada.
O impacto urbano da autonomia será paradoxal. Segundo a BloombergNEF, a frota global de carros poderá atingir o pico em 2035 e diminuir em até 23% até 2050, caso a mobilidade compartilhada se consolide. Mas o total de quilômetros percorridos aumentará: os robôs-táxis e os veículos compartilhados gerarão viagens mais frequentes, mais longas e mais baratas. Os carros autônomos poderão, portanto, reduzir a propriedade privada de veículos, mas aumentarão o tráfego.
O relatório do Bank of America conclui que a mobilidade autônoma será tanto uma disrupção econômica quanto uma transformação social. Da logística ao turismo, do transporte urbano à entrega de última milha, os veículos autônomos prometem redefinir o tempo, o espaço e o trabalho. No curto prazo, coexistirão com motoristas humanos; no médio prazo, os substituirão em tarefas repetitivas ou arriscadas; no longo prazo, poderão eliminar completamente o volante.
A corrida, portanto, não se trata mais de fabricar carros, mas de ensiná-los a pensar.
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