Human Garage: os gurus de Djokovic que "curam" traumas

Deitada no chão está uma mulher vestida com fato de treino com a boca aberta. Um homem com luvas cirúrgicas coloca os dedos pelo lado de dentro dos lábios e parece apertar a sua mandíbula e torcer-lhe a língua. De repente a mulher começa num pranto e é amparada por outra, que acompanha de perto a ação e as lágrimas. O vídeo mostra uma manobra fascial para a libertação de traumas e é um das dezenas, ou centenas, que os Human Garage já partilharam nas redes sociais. O grupo que se autodenomina um movimento de autocuidado é composto por Garry Lineham, Jason Van Blerk, Aisha Rodrigue e Cynthia Leavoy e, desde 2021, partilha vídeos de manipulações da fáscia, uma bainha de tecido conjuntivo que envolve e conecta músculos, ossos e nervos, que alegam melhorar dores e curar problemas gástricos, dores de cabeça, doenças autoimunes, stress e outras questões de saúde.
Recentemente Jason e Aisha estiveram em Lisboa. O Observador conversou com os dois membros do grupo popular nas redes sociais e assistiu a sessões de manobras fasciais que resultaram em momentos emotivos — e choro.
Praticantes vão às lágrimas em minutos e relatam dor e libertaçãoNo primeiro dia da Conscious Health Summit quase todos os participantes pareciam querer ver e ter a experiência de uma sessão com Jason Van Blerk. Descalço no palco circular diante do auditório cheio, o canadiano começa por sugerir que todos façam a posição fetal para “reprogramar o corpo”, alegando que “o corpo tem memória”. Todos cruzam as pernas e baixam-se devagar até ficarem agachados numa posição visivelmente desconfortável. “Repitam todos comigo: ‘Estou seguro, estou protegido”, pediu Jason Van Blerk. “É normal ter tensões e emoções neste momento. Digam: “Olá medo, obrigado por me proteger. Já não preciso desse tipo de proteção”. O que se seguiu foram muitas outras posições e manipulações para os mais variados problemas de saúde. “Profissionalmente sou muito consciente do papel que a fáscia tem no nosso corpo, mas não tive muita experiência. Então foi muito incrível sentir a libertação em muitas partes do corpo. Sinto-me diferente. Fisicamente mais alta, senti o meu corpo mais leve”, relatou-nos Julie Sadove-Lopez, uma das participantes no evento, após a aula.




▲ Os Human Garage deram um workshop sobre como praticar as manobras em casa, no Conscious Health Summit, em Lisboa
ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR
Jason mal tinha saído do palco quando foi abordado por Estee Lantos, que vive em Londres e viajou para Lisboa especialmente para participar na cimeira. O membro dos Human Garage colocou as mãos sobre os ombros e peito de Estee e pressionou, numa manobra que durou alguns minutos. No final, a jovem húngara tinha lágrimas nos olhos. “Tinha algumas questões na relação com a minha mãe que precisava de clarificar. Ajudou-me a desbloquear o meu corpo. Tenho tentado trabalhar nisso por anos, mas o meu corpo ainda se lembra. Sinto-me energizada, mas ainda preciso de processar. Mas é muito bonito.”
Dois dias depois o Observador esteve com Jason e Aisha num espaço privado, onde acompanhou as manobras a serem feitas em Patrícia Carla dos Santos Silva, que se queixava de dores. “Tenho várias hérnias na coluna, uma delas está em cima do nervo ciático. Tenho muitas dores todos os dias. Também tenho dores na garganta e na cervical”, conta. A dupla dos Human Garage fez várias manipulações no corpo de Patrícia e depois pediu para que a mulher andasse pelo espaço. Ao fim de cerca de 15 minutos, dizia que já não tinha mais dores e estava a chorar. “É libertador. É doloroso o que eles fizeram, mas há aqui muitos bloqueios a serem tratados. Só de falar fico emocionada. É uma sensação muito boa.”
Max Wolter viveu a experiência uma semana antes, numa sessão filmada que foi partilhada no Instagram. “Sabia que eles tinham resultados reveladores em outras pessoas. Mas é completamente diferente sentir no próprio corpo. Foi incrível. Sabia que tinha alguma lesão no joelho por oito ou nove anos. Durante cinco anos trabalhei para equilibrar o meu corpo e não conseguia. Então fiz o exercício do feto, uma liberação da anca. Foi muito doloroso mas então caminhei e tinha muito mais perceção das minhas pernas. Não sei porque chorei, mas acho que tem a ver com a ideia de que o meu corpo sabia que eu não caminhava corretamente há nove anos. Esta realização de que eu estava diminuído”.






Os Human Garage foram durante 10 anos uma clínica multidisciplinar em Venice, no estado norte-americano da Califórnia, composta por profissionais de diferentes áreas, desde médicos e nutricionistas até especialistas em quiroprátrica, naturopatia, astrologia ou reiki. Frequentavam o local atletas e artistas de Los Angeles em busca de curar dores. “Éramos muito bons a tirar a dor das pessoas. Mas o problema é que elas retomavam o estilo de vida que causava a dor. Seis meses depois, voltavam com problemas ainda piores”, diz Jason Van Blerk. A clínica fechou em 2019, e a pandemia serviu para repensar o projeto.”Pegámos em tudo o que aprendemos na clínica e começámos a praticar. Ficámos curiosos… Então começámos as manobras fasciais. Quando começámos a praticá-las, todos os dias, começámos a sentir-nos mais jovens, melhores, ter uma melhor digestão, mais energia.”
Entraram no TikTok em 2021 e depois foram para o Instagram, onde começaram a publicar todo o método gratuitamente. O grupo mantinha-se com economias e com as vendas de um suplemento que alegam ser “o anti-inflamatório mais forte do mundo”. Pouco mais de um ano depois, passaram a aceitar doações e desde o início do ano decidiram passar ao sistema “pague o quanto puder” para que as pessoas se juntem aos seus programas. Num vídeo partilhado pelo grupo em outubro de 2024, Garry afirma que este ano o objetivo é arrecadar 10 milhões de dólares em doações.
"Se trabalho numa influencer, ela vai partilhar com a audiência dela. Se trabalho com alguém com uma questão de saúde muito complexa e ajudo-a e ela transforma-se, o que acontece é que o resto do mundo vê. Então pensa: Espere, podemos curar Parkinson, demência, escoliosa e doença de Crohn. Qualquer coisa que faz as pessoas acreditarem ou que abra as portas para mil milhões de pessoas é onde queremos pôr o nosso tempo agora."
Jason Van Blerk, co-fundador dos Human Garage
Os Human Garage ganharam força nas redes sociais com vídeos impactantes em que, com movimentos e pressões em determinadas partes do corpo, deixam as pessoas emocionadas, tal como as sessões que o Observador presenciou em Lisboa. A alegação é a de que o corpo, mais especificamente a fáscia, guarda a memória de traumas que muitas vezes a mente esqueceu. “A fáscia conduz eletricidade, tem memória e mantém emoções. Também é responsável por segurar os músculos, os ossos, os tendões, os ligamentos e os órgãos. Então, quando trabalhamos a fáscia, por estar a segurar tudo, tudo equilibra e recomeça naturalmente. Os ossos voltam ao lugar, os músculos relaxam, os órgãos passam a mover-se para o lugar certo”, explica Jason Van Blerk. “Muitas vezes na vida temos emoções e começamos a ocupar-nos, distrair-nos. Não sabemos processar, porque somos ensinados a suprimir as nossas emoções e seguir em frente. Então, quando trabalhamos a fascia, porque ela segura tudo, as emoções transparecem e as pessoas veem coisas. Às vezes memórias vêm à tona.”
O Observador falou com outros profissionais que trabalham com saúde física e mental, que não têm relação com o grupo, e todos concordam que situações traumáticas podem gerar sintomas físicos — e que movimentações no corpo, quando feitas por profissionais preparados e em conjunto com um acompanhamento psicológico, podem trazer à tona estas memórias. O fisioterapeuta e osteopata Miguel Faria, que utiliza técnicas de manipulação fascial na sua prática clínica e dá formações sobre o tema, explica que a fáscia “é um tecido conjuntivo fino, forte e flexível que envolve, sustenta e conecta músculos, ossos, órgãos e outras estruturas do corpo”. Por ser ricamente inervada, é também responsável por uma parte importante da perceção de dor, “especialmente quando há disfunções ou tensões fasciais”, diz o especialista em manipulação fascial Stecco, um método criado pelo fisioterapeuta italiano Luigi Stecco nos anos 1980, com o objetivo de melhorar a mobilidade e reduzir dores ao pressionar ou friccionar determinados pontos, chamados centros de coordenação.
"O nosso corpo também grava os traumas. É por isso que as técnicas, muitas vezes, de pressão mantida, maior relaxamento, muitas vezes vai soltando estes traumas que estão reprimidos. Mas nós somos terapeutas manuais, não somos psicólogos. Muitas vezes a pessoa diz que se sente muito mais aliviada e o que nós fazemos é aconselhar, depois, um acompanhamento por parte do psicólogo."
Miguel Faria, fisioterapeuta e osteopata
“Enquanto o método Stecco de manipulação fascial é um método muito estrutural, ou seja, de fricção, há outros métodos que aplicam uma pressão de uma forma mais sustentada sobre o corpo. Essas técnicas são modificadas também para modular a dor, mas muitas vezes provocam algumas libertações emocionais, porque essa pressão mantida faz com que a pessoa relaxe muito mais profundamente, são mais ativadoras do sistema parasimpático“, relata Miguel Faria. “Algumas pessoas descrevem um relaxamento mais profundo e algumas, durante a sessão, têm esse tipo de libertações, às vezes podem até inclusive chorar ou manifestar alguns estados emocionais“, diz o profissional. O fisioterapeuta considera ainda que as dores persistentes e crónicas podem ter origem num trauma emocional forte, que pode ser descoberto durante uma sessão para tentar tratar o problema físico. “O nosso corpo também grava os traumas. É por isso que as técnicas, muitas vezes, de pressão mantida, maior relaxamento, muitas vezes vai soltando estes traumas que estão reprimidos. Mas nós somos terapeutas manuais, não somos psicólogos. Muitas vezes a pessoa diz que se sente muito mais aliviada e o que nós fazemos é aconselhar, depois, um acompanhamento por parte do psicólogo”, destaca.
A psicóloga especialista em trauma Susana M. Oliveira concorda que há experiências extremas que podem gerar sintomas físicos. “Quando falamos de trauma psicológico, com o conhecimento da neurociência, estamos a falar de uma resposta fisiológica, psicológica e neurológica que acontece no sistema, portanto corpo-mente. A pessoa passa por uma situação que é percebida por ela como sendo uma experiência mais exigente, que vai ultrapassar aquilo que são os seus recursos atuais, quer a nível emocional, físico, comportamental e cognitivo, e esse excesso vai provocar uma desregulação ao nível do sistema nervoso. Quando nós falamos de memória traumática, nós estamos a falar do aparecimento de sintomas, que vão desde sintomas físicos, fisiológicos, cognitivos, emocionais, mas que são sintomas que, portanto, ainda levam algum tempo a desenvolver-se”.
A profissional explica que sintomas sentidos dentro de um mês representam uma “resposta aguda de stress”, enquanto que para além deste período podem indicar “uma perturbação de stress pós-traumático”. “Normalmente são situações muito graves, traumas de choque, como catástrofes, acidentes, guerras, violações, assaltos. No entanto, a pessoa também pode desenvolver outros quadros clínicos após a acumulação de várias experiências de stress ao longo do seu crescimento ou mesmo que seja na vida adulta, vivem mais do que uma situação adversa ou traumática, também desenvolvem um trauma complexo.”
"A pessoa pode sentir alívio após as sessões, mas não vai trabalhar trauma nenhum. Porque para trabalhar um trauma ela tem que trabalhar o cérebro por inteiro, a parte inconsciente e a parte consciente. E se ela estiver muito doente, ela também não vai tratar só com a psicoterapia, porque há uma desregulação química ao nível da produção de neurotransmissores que estão em déficit, e que esta pessoa tem que fazer também um tratamento complementar com a psiquiatria, que é o médico especialista do cérebro."
Susana M. Oliveira, psicóloga especialista em trauma
Susana explica ainda que “as memórias mais inconscientes são corporais e emocionais”, e que técnicas de manipulação corporal podem ativar estas memórias, destacando que dentro da psicoterapia também são usadas “práticas que se foquem no corpo para ajudar a ativar o nervo vago”. “É o maior nervo que nós temos no nosso corpo, que liga o nosso crânio aos nossos órgãos, e que vai acabar por sinalizar ao nosso corpo e ao nosso cérebro que estamos numa situação segura“, diz a psicóloga. “Ao longo deste trajeto, ele vai passar por estruturas envolvidas pela fáscia, ou seja, há esta conexão anatómica entre o nervo vago e a fáscia. Estas manipulações podem trazer alívio físico e emocional”.
Contudo, a especialista destaca que é preciso trabalhar o trauma “no seu todo”. “A pessoa pode sentir alívio após as sessões, mas não vai trabalhar trauma nenhum. Porque para trabalhar um trauma ela tem que trabalhar o cérebro por inteiro, a parte inconsciente e a parte consciente. E se ela estiver muito doente, ela também não vai tratar só com a psicoterapia, porque há uma desregulação química ao nível da produção de neurotransmissores que estão em défice, e que esta pessoa tem que fazer também um tratamento complementar com a psiquiatria, que é o médico especialista do cérebro.”
Considerando o papel que o corpo pode ter no tratamento de um trauma, há técnicas que são usadas na psicoterapia, como as intervenções somáticas, como explica ao Observador a psicóloga e perita em psicotraumatologia Gabriela Salazar. “Todas as nossas experiências ficam gravadas no corpo, e depois o nosso desenvolvimento vai ser em torno dessa situação. O trauma é uma fixação, que além de emocional, também é física”, explica a especialista, que está a concluir uma formação no método Bodynamic, criado na década de 1980 pela dinamarquesa Lisbeth Marcher.
[Horas depois do crime, a polícia vai encontrar o assassino de Issam Sartawi, o dirigente palestiniano morto no átrio de um hotel de Albufeira. Mas, também vai descobrir que ele não é quem diz ser. “1983: Portugal à Queima-Roupa” é a história do ano em que dois grupos terroristas internacionais atacaram em Portugal. Um comando paramilitar tomou de assalto uma embaixada em Lisboa e esta execução sumária no Algarve abalou o Médio Oriente. É narrada pela atriz Victoria Guerra, com banda sonora original dos Linda Martini. Ouça o segundo episódio no site do Observador, na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube Music. E ouça o primeiro aqui]
A técnica defende que ao longo do desenvolvimento infantil criam-se mecanismos de defesa que podem moldar padrões de comportamento na vida adulta. Cada estágio da infância representa um tema emocional ao mesmo tempo em que desenvolve grupos musculares diferentes, que ficam mapeados no cérebro relacionados àquelas emoções. Para trabalhar as questões psicológicas na vida adulta, são usadas posições e movimentos corporais associados a frases afirmativas, como “este é o meu espaço, eu tenho o direito a existir, sou a gestora da minha vida, sou amada tal como sou”, exemplifica a profissional. “Ao trabalharmos isto, o músculo vai dar uma informação diferente ao cérebro e a partir daqui começamos a mudança”, explica a terapeuta, que diz que o processo decorre praticamente sem contacto físico com o paciente.
“Nós podemos tocar na pessoa se a pessoa entender que quer ser tocada. Há alturas que nós temos que fazer um exercício de toque em músculos de suporte, quando a pessoa está a ventilar, a aceder à sua própria história ou quando tem que tomar alguma decisão. Mas não é um toque com uma abordagem miofascial. É um toque superficial para estimular o músculo, para que ele possa ser trabalhado e envie a informação ao cérebro”, diz Gabriela Salazar. Os exercícios são ensinados em consultório e depois devem ser repetidos rotineiramente em casa. “É quase como se fosse um processo contínuo terapêutico sem a presença do terapeuta. Temos de dar autonomia e compromisso à pessoa”. Gabriela Salazar também considera que é possível que experiências e sintomas físicos possam esconder questões cognitivas do passado. “O corpo sabe tudo e nós, na maioria das vezes, já estamos a responder com o corpo e nem sequer percebemos na nossa cabeça o que estamos a responder”, diz a profissional.


▲ Jason Van Blerk é um dos principais oradores a difundir o método de manobras fasciais dos Human Garage
ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR
Apesar da maioria dos vídeos dos Human Garage mostrarem manipulações vigorosas de partes do corpo associadas aos momentos de “libertação de traumas”, Jason Van Blerk assume que nem sempre este contacto é necessário. “Às vezes nem preciso de tocar para libertar um trauma. Porque traumas têm a ver com segurança. Se a pessoa se sente segura, o trauma liberta-se. Às vezes a pessoa vem até nós e nem chegámos a tocá-la e ela já está a chorar, porque se sente segura”, relata. As experiências impactantes em que poucos minutos de massagem resultam em pessoas a chorar e afirmarem-se mais leves parecem ter sido a principal estratégia do grupo para crescer no último ano, com centenas e milhares de gostos e comentários nas redes sociais, e pessoas a procurarem os eventos em que os membros vão participar.
Mas agora, de acordo com Jason Van Blerk, o objetivo é associar-se à tendência da longevidade e do biohacking, e trabalhar a mensagem de que as manobras fasciais podem promover um ganho de performance. “Podes pensar e reagir mais rápido, dormir e digerir melhor. A tua memória aumenta quando praticas. Se realmente queres cura, a melhor forma é não focares na cura, mas em algo que queres alcançar. Uma meta tão alta como escalar o Monte Everest. Então a cura torna-se um passo no caminho”.
Sucesso entre influencers e “guru” de DjokovicDepois de interromperem os atendimentos na clínica e abrirem os conteúdos gratuitamente, o modelo de negócios atual dos Human Garage passa por expandir ao máximo, através de digressões mundiais a dar palestras e participar em eventos ao redor do mundo, com o objetivo de chegar às mil milhões de pessoas. “Há seis meses estávamos com uma dívida de meio milhão de dólares, a tentar partilhar a nossa mensagem com o mundo. Viajámos pelo mundo, a partilhar com as pessoas. Agora, Gary está no Dubai e há príncipes e famílias reais por trás, a querer doar e construir-nos um centro. Estão a financiar uma série de animação para crianças”, conta Jason Van Blerk, que diz que qualquer visibilidade é positiva.
“Se trabalho com uma influencer, ela vai partilhar com a audiência dela. Se trabalho com alguém com uma questão de saúde muito complexa e ajudo-a e ela transforma-se, o que acontece é que o resto do mundo vê. Então pensa: Espere, podemos curar Parkinson, demência, escoliose e doença de Crohn. Qualquer coisa que faz as pessoas acreditarem ou que abra as portas para mil milhões de pessoas é onde queremos pôr o nosso tempo agora”, diz o canadiano sobre a estratégia do grupo. Uma das influencers que se mostrou a passar por sessões com Garry e Cynthia é a britânica Niomi Smart, conhecida pelos conteúdos de lifestyle, wellness e espiritualidade.
Recentemente, Garry Lineham foi apontado como o novo “guru de wellness” de Novak Djokovic. O fundador dos Human Garage terá viajado para Wimbledon a pedido da equipa do tenista, para o acompanhar ao longo da competição. Lineham foi visto a assistir à partida de Djokovic e Miomir Kecmanovic no dia 11 de julho. No passado, o tenista causou alguma polémica ao decidir não se vacinar contra a Covid-19 — o nome por trás do grupo de manobras fasciais também é antivacinas.
Aliás, além das manobras fasciais, os membros partilham algumas ideias controversas e sem base científica. Num vídeo Jason Van Blerk alega, por exemplo, que usar óculos de sol causa queimaduras no corpo. “O corpo precisa de ver os raios de sol naturais para poder medir e ajustar a pele. Se usar óculos de sol a sua pele não se ajusta e queimas-te mais rápido”, diz. Noutro vídeo, Garry Lineham diz que pintar as unhas e os cabelos, usar saltos altos e sutiã são hábitos que “atacam a energia” das mulheres.
Fundador tinha outro nome e passado com a justiçaEntretanto, dos quatro membros que se dizem “fundadores”, apenas um fazia de facto parte da clínica em Venice. Garry Lineham fundou o espaço com a então mulher, a antiga ginasta bósnia Anela Lineham. A Human Garage ganhou alguma popularidade em Los Angeles entre 2015 e 2018, entretanto a clínica fechou entre 2019 e 2020. Quando a marca voltou para as redes sociais, em 2021, Anela já não fazia parte da equipa — em seu lugar estavam outros três co-fundadores, pessoas que se juntaram a Garry entre 2019 e 2021. O negócio mudou o logotipo e instalou-se no Canadá, onde Jason Van Blerk diz que fica o laboratório responsável por produzir o suplemento alimentar que o grupo vende.

▲ Garry Lineham é o único membro do grupo que fez parte da clínica em Venice, que fechou em 2019
humangarage.net
Antes de abrir a clínica, Garry era conhecido por outro nome, Nathaniel Garrand Lineham. Em fevereiro de 2010 Garry foi condenado a 4 anos e 9 meses de prisão por distribuir telemóveis Blackberry encriptados a uma rede de tráfico de drogas que operava do Canadá até ao sul da Califórnia. A investigação, conforme publicou o LA Times na altura, começou em 2008, foi conduzida pelo FBI e resultou na acusação de 18 pessoas. Garry Lineham terá usado o seu trabalho numa empresa de segurança de dados para distribuir os telemóveis que os traficantes usaram para trocar mensagens entre si.
Num artigo recente publicado no site dos Human Garage, Garry assume o seu passado, diz que foi detido por “acusações forjadas” e afirma que era conhecido “em todo o mundo por guardar segredos que nem o governo norte-americano era capaz de descobrir”. A pena foi totalmente cumprida em 2012 e logo em seguida começaram os trabalhos na Human Garage em Venice.
Até o fecho da clínica, Garry e Anela apareciam como o casal fundador do conceito Human Garage em podcastasts e entrevistas. A também professora de yoga tem vídeos em 2018 a ensinar técnicas de respiração a usar a T-Shirt da marca. Entretanto, a presença online de Anela Lineham praticamente desapareceu desde 2020. Em abril ainda falava em nome da Human Garage num podcast e a última vez que aparece a usar o apelido do marido foi em maio do mesmo ano, quando lançou um lubrificante com infusão de CBD e THC, chamado Anela Alchemy, que já não está no mercado. Entretanto, cinco anos depois, assina como Anela Portilla e atua como terapeuta de Harmonyum Healing e professora de yoga privada em Venice.
Em dezembro de 2019 Garry conheceu Cynthia Leavoy, como a própria relata num artigo partilhado no site dos Human Garage. A nova visão para o grupo parece ter nascido desta parceria, que não fica clara se ultrapassa a relação profissional. “No momento em que o viu, Cynthia já sabia o que aconteceria entre eles”, diz uma parte do texto. Em outro momento lê-se: “O maior desafio de Cynthia durante todas as mudanças foi separar a relação pessoal com Garry do lado de negócios da missão”.

▲ Aisha Rodrigue e Jason Van Blerk, co-fundadores dos Human Garage
FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR
Jason Van Blerk era personal trainer quando se juntou a Garry e Cynthia, também em 2020. Ao Observador, conta que sofreu muitas lesões na altura em que era jogador de futebol profissional: começou a jogar futebol aos 14 anos nas categorias de base do Vancouver Whitecaps, seguindo para a equipa da Simon Fraser University, onde fez o bachalerato em cinesiologia. “Apaixonei-me por curar e ajudar o corpo. Estudei cinesiologia para tornar-me fisioterapeuta, mas na universidade não gostava da forma como aprendia, sentia que o método tradicional não me ajudava. Só queria poder ajudar as pessoas. Terminei a escola e seis meses depois ia estudar fisioterapia, mas por alguma razão já não acreditava. E foi quando tudo isto caiu no meu colo”, diz.
Aisha Rodrigue veio depois, em 2021. “Era dançarina e contorcionista no Cirque du Soleil e dançarina profissional. Entrei no mundo dos negócios e das vendas. Fui diretora de vendas de cinco resorts diferentes no México”, conta ao Observador. No LinkedIn, Aisha revela mais sobre o seu passado profissional, como diretora de vendas do Original Group, um grupo de hotéis para adultos em Cancún. Nos últimos cinco anos, paralelamente à posição de diretora de vendas, Aisha fez formações com o orador motivacional Simon Sinek e tornou-se coach, abrindo o próprio negócio focado em desenvolvimento pessoal, manifestação e liderança, além de um espaço de saúde holística com tratamentos como o reiki ou aulas para realinhar o corpo.
Num podcast em 2020, Aisha relata como superou a dor da infidelidade. A então diretora de vendas conta que o marido traiu-a com mais de 30 mulheres, algumas delas que trabalhavam com ela no hotel ou tinham feito os seus programas de coaching. “Dor foi sempre algo muito presente na minha vida: física ou mental”, afirmou, na altura, dizendo que busca uma abordagem de aprendizagem diante destas situações. No Facebook, a coach mostrou aos seguidores ao longo dos meses seguintes como perdoou a traição.
"Comecei a ficar mais sorridente, mais social, passei a deixar as pessoas tocarem-me. Foi uma grande mudança. Depois disso deixei o meu emprego corporativo, super bem sucedido, uma carreira, uma vida. Deixei o meu casamento, a minha casa. Prometi ao universo que se encontrasse outro caminho, dedicaria a minha vida a partilhar isto."
Aisha Rodrigue, co-fundadora dos Human Garage
Ao Observador, Aisha conta que o encontro com os Human Garage representou uma mudança significativa na sua vida e deu-se através de outra dor. “Quando estava no Cirque du Soleil tive uma paralisia enquanto o meu corpo estava a sete metros no ar. Caí e fiquei numa cadeira de rodas por um ano, precisei fazer quatro cirurgias nas costas. Tive que aprender a andar novamente. Passei 14 anos em fisioterapia três a quatro vezes por semana, tentando todos os tipos de medicamentos que não me permitiam ser eu mesma. Passei por tanta dor que quando quiseram fazer uma quinta cirurgia no meu pescoço que poderia me deixar tetraplégica eu disse: nem pensar! Foi quando comecei a procurar alternativas.
Um dia, a chorar no carro, completamente desesperada, do lado de fora da escola da minha filha, pedi um sinal de Deus ou do universo. Foi quando vi um vídeo dos Human Garage.” Aisha diz que entrou em contacto com o grupo e fez o tratamento com manobras fasciais. “Comecei a ficar mais sorridente, mais social, passei a deixar as pessoas tocarem-me. Foi uma grande mudança. Depois disso deixei o meu emprego corporativo, super bem sucedido, uma carreira, uma vida. Deixei o meu casamento, a minha casa. Prometi ao universo que se encontrasse outro caminho, dedicaria a minha vida a partilhar isto”.
A residência coletiva em CancúnDesde 2024 que o grupo tem viajado pelo mundo a tentar espalhar a filosofia de vida, a participar em eventos e a dar aulas. Desde janeiro, os Human Garage dizem já ter promovido 20 encontros internacionais em 14 cidades. Entretanto, o grupo está centralizado numa residência coletiva em Cancún, no México. “Nos últimos 5 anos temos testado como é trabalhar e viver em comunidade. Construímos um lugar em Cancún e atualmente vivemos em 15 pessoas a trabalhar juntos. Mas começámos a digressão mundial no ano passado, e como uma banda temos viajado com crianças, adultos, avôs. Trouxemos as nossas famílias para isto”, explica Jason Van Blerk.
A residência no México foi, na verdade, um dos primeiros grandes projetos de Aisha assim que se juntou ao grupo, pela experiência que já tinha com resorts na cidade. “Está a ser uma experiência. No início os meus pais ficaram com medo, questionaram como eu ia levar a minha filha para uma casa com 15 a 20 estranhos de todo o mundo. Mas antes, eram as vilas que criavam as crianças. As famílias cuidavam uns das crianças dos outros. Para mim, foi muito natural e senti que era a coisa certa”, assume a coach. “A minha filha foi de não falar inglês para em três meses tornar-se completamente fluente”, diz ainda.
A casa é usada como cenário para os vídeos com sequências de manobras enquanto o sofá da sala serve de estúdio para os membros gravarem podcasts. Num dos vídeos que o grupo partilhou no Youtube, Garry, Cynthia, Jason e Aisha aparecem junto de outros coachs e integrantes a fazer sessões na praia, a fazer caminhadas na natureza, ir a fornecedores de óleos essenciais e a promover aulas em espaços públicos.
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