Mike Leigh e as farpas da vida conjugal, sem guião

Verdades Difíceis, novo filme de Mike Leigh, é uma peça de câmara que privilegia os espaços interiores e a dinâmica de uma família dos subúrbios de Londres dominada pela matriarca Pansy (Marianne Jean-Baptiste), mulher de meia-idade, contestatária, irascível – numa palavra, insuportável. Pansy ferve em pouca água face ao silêncio do marido Curtley (David Webber) e à apatia do filho Moses (Tuwaine Barrett), que nem se atrevem a levantar-lhe um dedo. Quando sai à rua, é intolerante a tudo o que mexe. Não poupa médicos nem empregados de supermercado. A infelicidade da personagem é profunda e insondável, mas nem por isso deixa ela de dar cartas à tragicomédia — “e não é assim a vida, cómica e trágica?”, pergunta o cineasta de Manchester mais à frente.
Marianne Jean-Baptiste, que foi inesquecível em Segredos e Mentiras (Palma de Ouro em Cannes 1996, com Francis Ford Coppola a presidir ao júri; filme cinco vezes nomeado para o Óscar) está outra vez no centro de um grande trabalho de interpretação colectiva gerado pela demorada exigência dos ensaios com os actores e da forma orgânica como são construídas as personagens. Também sobre isso falámos com Mike Leigh em Setembro do ano passado, em entrevista numa sala do Hotel Maria Cristina de San Sebastián, enquanto decorria o festival de cinema basco, poucos dias após a estreia mundial da obra, no lado de lá do Atlântico, em Toronto (Cannes não o quis, Veneza tão-pouco).
À escala portuguesa, já não havia um filme de Mike Leigh nas salas há mais de uma década, desde a estreia de Mr. Turner (2014). A obra seguinte, também um filme de época, Peterloo (2018), foi parar aos labirintos do streaming – e merecia melhor sorte. Sete anos e uma pandemia depois, aí está Verdades Difíceis, novo capítulo de um cineasta que sabe como poucos dar forma ao desencanto. Mike Leigh corrigir-nos-ía se nos lesse: a vida é que é assim, o desencanto apenas uma parte dela.
[o trailer de “Verdades Difíceis”:]
Contou em tempos que cada pessoa com quem se cruza na rua é uma personagem sua em potência, mas isto não tem nada que ver com o seu processo de trabalho, que tem vindo a ser afinado filme a filme, década a década, pois não? A ideia de um filme e a construção de uma personagem são coisas muito diferentes. Aquilo que faço inicialmente com os meus actores é pedir-lhes uma lista variada de pessoas verdadeiras do seu conhecimento, independentemente destas serem família, amigos, pessoas apreciadas ou detestadas. Depois escolho dois ou três nomes de cada lista. Continuamos a desenvolver isto, sem imaginarmos sequer o que a personagem é ou o que vai dar. Da amálgama destas duas ou três fontes reais começa então a nascer um esboço muito ténue da personagem. Só depois começa ela a ganhar um corpo com três dimensões. Este processo é lento. Numa etapa seguinte, a vida da personagem é explorada por nós até ao mais ínfimo detalhe na relação com as outras personagens. No caso de Verdades Difíceis temos as duas irmãs, por exemplo.
Este é o procedimento prático, digamos. Que para mim é vital como processo criativo. É assim que as personagens ganham vida. Os meus actores concordam em entrar no projecto sem a mais pequena ideia do filme que vamos fazer. Eu próprio não sei o que vou filmar, não há história. O acordo que temos, basicamente, é este. A excitação e o estímulo vêm daqui. Obviamente, quando olho para os actores à medida que começo a imaginar as possibilidades das personagens, sigo intuições e noções relacionadas com coisas que me preocupam na vida. Fico com certas coisas que os actores trazem às personagens, rejeito outras. Normalmente, recebo mais do que aquilo que ponho de parte. Em última análise, os meus filmes constroem-se com estas interacções. É um método criativo que, bem vistas as coisas, não é afinal tão diferente do método de qualquer outro artista que escreve, pinta ou compõe. Comprometo-me progressivamente com um processo de descoberta, à procura de uma verdade.
Por falar em coisas que preocupam na vida: Pansy, a personagem de Marianne Jean-Baptiste, vive na dor. Sempre zangada. É especialmente dura com o marido e o filho. Não consegue estar em paz com o mundo. Não tem descanso. Porque é que uma personagem como esta lhe interessa? Para ser honesto consigo, a resposta à pergunta está na sua própria observação detalhada da personagem. Pansy não sofre de um síndrome incomum. A resposta é essa. Muitos de nós, seres humanos, vivemos assim. Não estamos a falar de uma condição obscura sem ressonâncias em nós. Pansy não é obscura ou esotérica. É mulher, mas podia ter sido homem. Pansy cresceu assim, tal como está no filme, mas todos nós a conhecemos ou já nos cruzámos com ela num certo momento da vida. No entanto, e se eu quiser responder à sua pergunta num nível completamente diferente, suponho que devo falar de Marianne Jean-Baptiste.
observador