Ó-baim'à-loja

O meu nome é Saramago, José António Saramago. Muitas vezes, demasiadas vezes, confundem-me com o outro Saramago e perguntam se somos parentes. É claro que não somos, mas, vá lá, como temos o mesmo apelido é “tema” que ainda compreendo, agora quando os habituais “caga e tosse” – gente que nunca se decide, me perguntam – Saramago escreve-se com “Ç” ou com “S”? “Escrebe-se com a p*** da caneta ó morcão!” É a resposta que sai de rajada e, fim de papo!
Mas já me “t’ou” a alargar. Muitos vão achar que “t’ou” a “encher chouriços” ou a ver se “bos endromino” e essa não é mesmo a minha intenção. A verdade é que “a minha bida daba um filme e inhantes que bocês desistam, bou maiszé dar à manivela”.
Nasci no “Poerto” em 1991. Fiz 34 este ano, e tinha 19 no ano do “apagão”. Fui batizado de José António Saramago, mas os meus amigos chamam-me ”Quim da Loja”.
A minha mãe “bateu a caçoleta” quando nasci e fui criado pelo meu pai e uma tia que após “a morte da minha defunta mãe” me deu três primos mais ou menos de rajada. Quem nos conhecia não estranhou. A minha tia não era esquisita e o meu pai não se importava de ter sobrinhos.
O sustento da família vinha de uma loja de ferragens que possuíamos em Campanhã e eu, ainda menino de escola, costumava nos fins de tarde ajudar no negócio. Na loja, para além da família, trabalhava o Zé António, um rapaz mais velho que eu, mas “feio que tolhia”. Tinha uma cara “bexigosa” adornada por dois enormes “abanadores” e era magro como uma “cruzeta”. Uns anos antes de “darmos corda à língua” teve um acidente que lhe deixou um joelho desfeito e lhe emprestava um caminhar tipo, “se te acaço, mato-te”.
Quando o meu pai berrava na loja “Ó Zé António”, “Ó Toino”, “Ó Zeca, Ó Murcão”, etc, “birabamo-nos” sempre “ambos os dois”. Miúdos que éramos, dávamo-nos ao pavor dos berros que invariavelmente ecoavam quando ninguém respondia. Tínhamos o mesmo nome e, para evitar confusões, o meu pai passou a chamar-me de Quim que era o nome de um antigo guarda-redes do FCP. Foi assim, e também para não me confundirem com o escritor, que passei a ser conhecido pelo “Quim da Loja”.
Mais ou menos em 2010, um ano antes do “apagão”, conheci uma russa, bem torneada, loira, olhos de um azul profundo e um sotaque cheio de “ch’s” e “f’s” que me deixava com “fornicoques” e a babar. Chamava-se “Irina Pakovonovitch”, mas nós “conhecimuzi-a” pelo diminutivo de “UrinaPacova”, e era tão linda que “a sua mãe só podia ser uma ostra para cuspir uma pérola assim”.
Andava eu cabisbaixo por tanto tempo a “seco”, quando a vi pela primeira vez. Foi um “acorda ó tronco”! Sem muitas expectativas, mas como quem nada tem a perder, meti conversa. Ajeitei o meu ar andarejo, tomei-me de um tom sério e perguntei-lhe – a menina sabe-me dizer onde posso apanhar o metro para o aeroporto? Sorriu e fez-me sinais que não falava português, e eu, que de mãos não sou nada mau, não perdi a oportunidade e logo “as meti na massa”.
A coisa correu bem! Creio que achou graça ao meu sotaque tripeiro. Convidei-a para umas “Super Bock” – “as bejecas do Norte”, e foi como mel! Com ela era sempre a “soltar a franga”. Nunca fui tão feliz como então!
A “Urina” trabalhava numa casa de alterne, em Gondomar, onde fazia pela vida. Um dia numa rusga “beio a bófia” e levou todos de cana. Por sorte eu não estava. Dias depois, foram todos presentes ao Sr Juiz que teve mão pesada para quem era reincidente. À “UrinaPacova”, que nunca tinha sido apanhada n’quelas andanças o Sr Juiz soltou-a com uma reprimenda e a obrigação de arranjar um d’aqueles empregos com descontos p’rá segurança social. Ao que sei foi trabalhar como doméstica para casa do Meritíssimo. Sempre há gente com um grande coração! Quanto à “Urina” nunca mais lhe “botei” a vista em cima – “fruta q’eu gosto não falta quem a coma”.
Mais ou menos por essa altura, o negócio começou a correr mal. A loja de ferragens já não dava para as despesas e depois de “ferrar o jeco” ao fornecedores, não demorou muito a encerrar portas. Ensimesmado pela vergonha o pai “bateu a bota” e eu vi-me sem jeito de sustento – nem para os “morfos arranjava tuste”. Tinha-se acabado o sossego, o tempo de “andar a coçá-los” – o porto seguro “já era”!
A casa foi entregue aos credores. A minha tia sem ter como garantir a vida fez as malas e com os meus “três primos” partiram para Amarante onde tinham família. Eu, apesar da casa ter sido entregue aos credores deixei-me arrastar e recusei-me a sair. O processo de despejo “ainda rola”, mas enquanto “não me mandam com os porcos” vou-me deixando ficar.
Fico sempre triste com esta parte da minha vida. Fico sempre de “badalo partido”, meio amorfo e com pouca vontade de contar a história. Para me animar, como sempre faço quando ando “de pá virada”, lembrei-me dos gloriosos “Cinco a Zero” – dois do Hulk, dois do Falcão e um do Varela, e a memorável “noite molhada no Dragão”. Uma noite molhada mas por chuva natural e não com água a “bir” de repuxo! Quando me lembro disto ganho sempre um novo folgo e… Bom, voltemos à história. Com a morte do meu pai, e eu já na casa dos vinte, tinha de fazer pela vida!
Foi por essa altura que conheci o “Neca das rolhas”. Era assim conhecido porque conseguia “sair de mansinho”, mesmo das situações mais aflitivas. Alguns achavam que era sorte, outros viam nele “um artista”. E era assim que ele se via, um artista! E como artista que se pretendia, começou a dar mostras da sua arte onde quer que tivesse público. Atuava em praças, junto aos bares. O seu local predileto era nos semáforos da Avenida da Boavista, ou na Circunvalação. Levava um banco e com umas bolas que arremessava apanhava-as sempre pela mesma ordem que as atirava, quer tivesse de pé, sentado ou encavalitado no banco. Não parecia difícil e o “público” ficava feliz quando ele saía da frente! Alguns chegavam mesmo a dar-lhe moedas.
Aquele modo de vida não parecia difícil pelo que resolvi fazer d’aquilo “biscate a tempo inteiro”. Não era seguramente “tema” para ficar rico – dizia-me o Necas que as notas só as “bia” nos outros, tinha, dizia ele, de arranjar umas “gafas” para as “ber” ao perto!
Como tinha um pouco mais de jeito que o Necas, fazia um número mais elaborado. Recorrendo aos meus tempos de jogador de bola, arranjei duas bolas de trapos, para não saltarem muito e, enquanto o semáforo não “esberdeava”, dava toques com os pés, mantendo as duas bolas sempre no ar. Raramente me atrapalhava e as deixava cair. Por vezes entusiasmava-me com a minha própria habilidade e era “acordado” por algumas buzinadelas quando os semáforos, sem que me apercebesse, ficavam de “verde ranho”.
Era difícil ser artista e recolher os donativos antes do trânsito arrancar. Foi assim, por questões operacionais, que eu Neca começamos a “atuar” em conjunto. Enquanto um fazia pantominas, o outro recolhia a receita. A cooperação era claramente benéfica, ainda que no final, enquanto arrumava as tralhas, o Necas tentava sempre ver se me passava a perna. “Julgava o mano que me endrominava! T’a bem abelha!”.
Nem todos os “espectadores” pagavam bilhete. Alguns punham cara de “boa noite ó Freitas”, outros achavam que era melhor fazer pela vida assim que andar “noutras vidas”, ou nada fazer e ser “subsídio-dependente”. Mas também havia quem achasse que tínhamos jeito e que, à nossa maneira, éramos artistas merecedores de um aplauso. Esses, enchiam-nos a alma.
Ninguém ia ficar rico n’aquela atividade. O “arame” que de lá jorrava não dava para ter uma vida “à la gardère”, mas era o suficiente para “abancar” de forma aceitável. À noite recolhíamos no bairro da pasteleira. Bebíamos “bejecas” e com enorme “basqueiral” discutíamos com tudo o que nos vinha à cabeça. Era sempre a “bombar”. No meio da trupe havia uns macambúzios, sempre indispostos, outros, os da claque dos “Superdragões” ficavam agressivos quando vinham do estádio a “seco”. E claro, havia a Benilde que “ainda rompia meias solas”.
Enquanto nos ficávamos pelas “bejacas”, o “arame” do dia dava para os “morfes”. O problema veio quando começamos a fumar “coisas mais fortes”. De início era só pela diversão, mas o que de início pareciam pacotinhos de “alegria e boa disposição”, rapidamente se tornou numa “fome que não acabava”. Sempre queríamos mais e mais. Só quando tombávamos inanimados, “amarelos como peidos”, com as tripas a “pintar à pistola”, só aí parávamos. No dia seguinte acordávamos com uma trombeta de ressaca, sempre pior que a da manhã anterior. Era um morrer todos os dias, um caminho sem retorno e cada vez mais difícil de trilhar.
De início a droga aparecia como que por magia. Ninguém nos perguntava se tínhamos como pagar. Mas quando, já dependentes, o vício só se saciava se acedêssemos ao que nos pediam, era então quando nos “agarravam”. Foi assim que entrei no “negócio dos automóveis”.
Ensinaram-nos como partir um vidro, como detetar rapidamente tudo o que havia de valor. Ensinaram-nos a escolher o que era bom para o “negócio”, como fazer uma limpeza rápida, como “desviar” placards do tablier, cabos de ligação, pneus, jantes, catalisadores, etc.
E tudo era muito bem organizado. Havia quem fizesse lista dos itens com mais procura, havia quem batesse o território à procura de “vítimas” para satisfazer as encomendas, e depois, com o “circo” montado, nós os peões fazíamos o “trabalho da limpeza”.
Perguntam se era perigoso? Claro que era! Mas também tínhamos os nossos esquemas montados. Enquanto uns “desviavam os produtos”, outros ficavam em pontos estratégicos para nos avisar se havia “bófia” por perto – Água, Água, era o grito de alerta! Funcionava quase sempre bem, e raramente tínhamos de saltar para a “bicla” e “chispar” rapidamente. Sempre achei curioso o “à vontade” com que atuávamos. Era como se tivéssemos as “costas quentes”!
Recordo-me de uma vez me terem encomendado umas peças de um “bêeme”. Lá fiz o serviço com o Neca das Rolhas de apoio, e entregamos o produto a quem tinha feito a encomenda. Cada um recebeu “duas doses” e o pagamento ficou feito. Mais tarde “biemos” a saber que o arranjo do carro tinha ficado por 10.000€, e a “bófia” tinha-se recusado a investigar porque “as peças já se encontravam em África”! Em África? Tinha ido tudo para um armazém em Gondomar. Enfim, há quem se abotoe com muito mais e arrisque muito menos.
E assim fui levando uma vida alimentada de “pequena criminalidade” e entremeada com atuações na via pública.
Acho que já alguém disse um dia – se uma coisa pode correr mal, mais cedo ou mais tarde corre mesmo. Escapar sempre, é algo que nunca acontece, “nem que a vaca tussa”.
Com o aumento do número de elétricos em circulação “o negócio” começou a ficar mais parado. Os catalisadores, que sempre foi o que mais rendeu, eram agora mais difíceis de retirar, muito mais raros e de menor procura. Com os elétricos as peças úteis para o negócio, ou eram impossíveis de “negociar” pelo peso – bateria de tração; de acesso difícil ou de menor valor de mercado. O negócio “andaba” mal quando em 2023 perguntei ao ChatGPT – como poderia continuar no “negócio” dos automóveis, agora que os elétricos pareciam estar a mudar o paradigma? O “mano foi pró” e disse: “Ó campeão, põe-te fino! Isto agora já não é como no antigamente quando um gajo ia ao catalisador e saía de lá com a reforma paga. Nos elétricos a mina tá escondida. É preciso olho e mão fina, não é só pé de cabra e martelada. Primeiro, apanhas o cérebro da máquina – ECU ou BMS, mas pra ti é a ‘caixa dos fios coloridos’. É lá que “tão” uns douradinhos que parece que os roubaram a uma rainha. Depois, tens o inversor. É um trambolho com peças que brilham mais que uma montra da Ourivesaria Aliança. A seguir, e para o “negócio” ser rentável, vem o bucho do carregamento, uma peça cheia de placas com pó de ouro – não, não é pra aspirar carago, é pra vender! E, não te esqueças do cinema do carro – rádio, GPS, o tablet gigante que têm. Tudo como o ouro nos dentes do artistas. Tens ainda as fichas, aquelas pequenas ligações de alta voltagem, mas com um valente banho de ouro e um “banho de lucro pra ti”.
Para negócio, podes contar ainda com “os olhos do bicho”, sensores, câmaras, radares. Tudo desmontado e guardado rende mais que raspadinhas. Ah, e antes que me esqueça, tens ainda a caixinha da magia, a tal que ajuda o carro a conduzir-se sozinho. Vale um dinheirão e tem sempre peças com mais brilho que o Bolhão em dia de festa. Tás a ver? Aqui o segredo é saber onde cutucar. Nisto, um bom ferro de soldar vale mais que um pé de cabra. Aprende com a IA, e que nunca te falta arame pro bolso”.
O “negócio” estava lançado, só que mais arriscado. E um dia, o que tinha de acontecer, aconteceu. Eu e o Neca fomos apanhados e presentes a Juiz!
Na sala de julgamento reconheci-o de imediato. Era o mesmo que se tinha abotoado com a “Urina”, que ao soube mais tarde, assumia agora funções de assistente. Eu sempre achei que aquela rapariga, com um corpinho daqueles tinha tudo para subir na vida.
O Meritíssimo, homem de grande coração, era pouco dado a mandar pra “pildra”. E porque estávamos perto das legislativas em 2025, entendeu por bem que uma atividade cívica que poderia fazer de nós melhores cidadãos era obrigar-nos a assistir aos tempos de antena da campanha eleitoral e aos debates na televisão, e no final de cada dia, teríamos de fazer um resumo dos mesmos.
Na vida tudo é assim. Fecha-se uma porta, abre-se uma janela. E assim foi! De inicio tudo aquilo era confuso. Logo á partida ficava-se com a ideia que aquela atividade devia ser muito irritante! Quando apareciam na televisão estavam sempre a discutir, irritavam-se facilmente e faziam questão de nunca concordar em nada. A impressão que ficava é que até do reflexo do espelho discordavam! A tarefa era enfadonha, mas eu e o Neca lá nos desenrascámos e à medida que ia fazendo os resumos fui percebendo ao que aquela gente vinha – não era importante se as promessas eram razoáveis ou faziam sentido, se alinhadas com quem as ouvia tinham o sucesso garantido!
O meu destino teria de ser esse. Falei com o Neca que de imediato se disponibilizou e assim decidimos que iriamos dedicar-nos à política. Porém, a dificuldade à partida era saber, em que partido? Consultei o “Votómetro” do Observador e fiquei desiludido! As minhas respostas pareciam sair da grelha. Teria de fazer algo de novo e diferente.
No rescaldo das eleições legislativas, o mundo político começou a virar-se para as eleições seguintes – as Autárquicas e as Presidenciais.
Nas presidenciais Marques Mendes surgia como um forte candidato, o que reforçava o meu interesse por uma carreira política. Se ele tinha sucesso, porque não eu? Pelos vistos o sucesso está ao alcance de todos e não se mede aos palmos.
O que precipitou a decisão foi o anuncio de Rui Moreira em se candidatar à Presidência República. Se o Rui Moreira se aguentou tanto tempo porque não posso eu, Quim da Loja candidatar-me à Presidência da Camara?
A política é como um espetáculo de rua. Tal como nos “artistas” de semáforos, o segredo é chamar atenção por uns segundos e recolher “donativos” antes do público seguir caminho. Se sou bom a distrair na rua, também o posso ser noutros espetáculos de maior retorno. Só tenho é de arranjar forma de chamar a atenção. E, bem vistas as coisas, para as eleições autárquicas não necessito de um partido. Posso sempre criar um movimento.
E foi assim que surgiu o “Ó-baim’à-loja”, um movimento criado para apoiar a minha candidatura à Câmara do Porto. A campanha oficial está pronta a arrancar e os que sabem do projeto, os meus apoiantes e amigos, quando me veem na rua, gritam-me palavras de inconfundível apoio – Ó Quim, “Ó-baim’à-loja”, ao que invariavelmente respondo, O Quim “bai” e “traz sempre o troco”! “Não vos parece que t’amos a ir direitinhos?”
Sem qualquer acordo. O autor “escrebe como lhe dá na bolha”.
observador