Quem sussurra os destinos da Europa?

Entre julgamentos mediáticos, guerras que já nem nos tiram o sono, tarifas a caminho e eleições que parecem reality shows, algo importante começa hoje no coração da Europa, e curiosamente quase ninguém reparou. A Dinamarca assume, a partir de 1 de julho, a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. E não, não estou a falar de um cargo simbólico para encher calendário institucional. Estou a falar de poder real. Discreto, mas real.
Eu sei que até pode não parecer, mas é aqui que se lançam os dados de boa parte do futuro da Europa. Porque enquanto andamos entretidos com o barulho à superfície, há decisões que se tomam longe dos holofotes, em salas sem público, em agendas que raramente chegam às notícias. E é nessas salas que se negoceiam as regras que definem se a Europa avança, estagna ou anda aos solavancos.
Costumo dizer que quem manda mesmo na Europa não são os rostos que aparecem nas campanhas, mas os que organizam as pastas, os que gerem os calendários, os que escolhem quais as pastas que andam ou ficam paradas. A presidência do Conselho da EU, que, importa lembrar, não é o mesmo que a Comissão nem o Conselho Europeu, tem precisamente esse papel. Não impõe, mas escolhe prioridades. E, sejamos honestos, isso é o mesmo que escolher caminhos.
Já estive em muitas dessas salas, direta ou indiretamente. Já vi como se decide o destino de fundos que depois chegam (ou ficam pelo caminho) às cidades. Já vi boas ideias bloqueadas por questões processuais e autênticas aberrações passarem porque alguém soube empurrar no momento certo. Por isso, quando vejo começar uma nova presidência do Conselho, fico atento. E espero. Espero sempre que não seja só mais um semestre para marcar presença.
A Dinamarca vem com tradição de pragmatismo, foco local, valores claros. O programa da presidência é limpo, quase clínico: segurança, crescimento verde, competitividade, coesão e democracia. Quase inofensivo, mas por trás destas palavras vivem debates ferozes: como vamos lidar com a escalada da IA? Como é que as pequenas e médias cidades vão aceder a fundos europeus sem ficarem reféns das capitais? Vamos continuar a alimentar um mercado interno cada vez mais desigual?
Recordo-me da última vez que os dinamarqueses estiveram neste papel, estávamos em 2012, em pleno pico da crise do euro. Não prometeram mundos e fundos, mas entregaram estabilidade. Fizeram avançar reformas estruturais com método e discrição. E em 2025? O mundo já não é o mesmo. A crise não é apenas económica. É social, climática, digital, e profundamente política.
E sim, espero bastante desta presidência. Espero que nos ajude a reequilibrar a política de coesão, a aproximar os dados públicos dos cidadãos, a reforçar a interoperabilidade e a inteligência local. Espero que ponha os municípios no centro, porque é nas cidades que a Europa acontece. Não nos gabinetes.
Espero também que se tenha coragem para dizer que o Green Deal não chega se continuar a servir sobretudo os países que já estão à frente. E que se perceba que a transição digital não é neutra – ou se governa com ética e inteligência, ou acaba-se com uma Europa onde uns programam e outros são apenas programados.
Eu sei, tudo isto pode parecer distante, afinal de Lisboa a Bruxelas são 2000 km e a Copenhaga 3000 km. Mas estas decisões afetam a forma como usamos o transporte público, como acedemos a serviços online, como as escolas se equipam, como os hospitais se digitalizam, como as empresas contratam. Afetam, no limite, a qualidade de vida que temos nas nossas ruas, nos nossos bairros, nas nossas escolhas diárias, e muitas vezes até nas nossas liberdades.
Por isso, sim, enquanto gritamos nas urnas, há quem sussurre os destinos da Europa. E o mais preocupante é que esses sussurros são muitas vezes ignorados por quem devia estar a escutá los. Não quero ser dramático, mas também não quero ser ingénuo. Já não temos o luxo da distração.
Se há altura para prestar atenção aos bastidores, é agora. Porque é lá, e não no barulho do costume, que se está a decidir o nosso futuro.
observador