A força das coisas

As elites ameaçadas são quase sempre as últimas a saber. Independentemente da sua inteligência e lucidez. Embora sintam o perigo para a sua hegemonia e para os seus privilégios – pequenos, médios ou grandes – há uma cegueira endémica que as impede de ver o óbvio.
No Domingo, tornou-se particularmente evidente que há uma vaga de fundo, uma revolução ou uma contra-revolução generalizada, uma mudança político-social que, como todas as grandes mudanças, parece surgir do nada, como se da “força das coisas” se tratasse.
Porque, curiosamente, a mudança não vem de um qualquer 28 de Maio ou 25 de Abril, de um movimento, de um golpe militar, de uma alteração brusca da ordem político-social – vem de eleições, de consultas populares. No entanto, os oráculos da notícia e do comentário daquilo a que se convencionou chamar “o sistema” não querem saber de mudanças ou das suas causas – permitem-se ficar só surpreendidos, ou só chocados, ou só perturbados com a radicalidade dos factos, por ter o povo, soberano quando “vota bem”, mudado inexplicavelmente de lado, de cor, sem razão aparente que não a eventual “manipulação” por forças “populistas”.
O projecto globalistaFoi a partir do fim da Guerra Fria, numa conjuntura que resultou do triunfo da democracia liberal sobre o comunismo soviético, com o desaparecimento repentino ou gradual dos partidos comunistas que oprimiam a Europa Oriental e eram importantes na Europa Ocidental, que se instalou na Europa e no mundo euro-americano “o sistema”.
Os governos e as forças que levaram à convergência que liquidou a URSS – o reaganismo americano, o conservadorismo tatcheriano, São João Paulo II e a sua Polónia, juntamente com um punhado de regimes de todas as cores – eram então apoiados por um anticomunismo popular e patriótico em política e conservador nos costumes. E a defesa da liberdade económica, que permitiu que os ricos americanos ganhassem muito dinheiro no tempo de Reagan, vinha com um conservadorismo patriótico que tinha grande apoio nas classes médias e trabalhadoras.
O que aconteceu depois do fim do comunismo e da libertação da Europa Oriental, a partir da administração Clinton e George W. Bush, foi outra coisa e muito diferente. O projecto de impor uma forma de mundialismo político-económico de hegemonia americana, a que os neoconservadores quiseram dar a respeitabilidade de cruzada ideológica, democrática e humanitária, esse projecto de fazer do mundo um grande mercado unificado em que a economia e a pretensa racionalidade da economia dominassem e comandassem o político, o ético e o social, encontrou aliados nos partidos do centrão europeu.
O macroterrorismo jihadista e as medidas de excepção que legitimou para o combater ajudaram a justificar as guerras que, dos Balcãs ao Médio Oriente, à custa de centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados, quiseram impor o “modelo americano”, sem olhar ao absurdo que, pelo desafio à História e aos costumes, representava a sua implantação artificial em muitas latitudes.
O movimento que, na Europa, acompanhou este movimento mundial foi a tentativa de transformar a união económica e financeira numa unidade política única, à custa da soberania dos Estados. Depois da rejeição popular da Constituição Europeia nos referendos de 2005, em França e nos Países Baixos, os federalistas passaram a ser mais cautelosos, recorrendo à estratégia indirecta de criar factos consumados através da legislação e de multiplicar lobbies e lobystas por interesse ou convicção. O resultado, ou o método, foi uma aliança entre o que restava de uma radicalidade cultural de esquerda abandonada pelas massas trabalhadoras e os interesses dos gestores dos grandes fundos e bancos de investimento, do grande capitalismo financeiro e das altas e médias tecnoburocracias dos aparelhos públicos e privados.
Com o desaparecimento dos partidos comunistas, os socialistas chegaram-se para o centro-esquerda e os democratas-cristãos e conservadores para o centro-direita, acomodando-se em “centrões”, onde se foram esquecendo de eleitores e programas de origem. Entretanto, a desindustrialização e a deslocalização das indústrias para “paraísos laborais” foram despovoando as zonas industriais da Europa que, progressivamente, deixou de produzir coisas e de aplicar recursos para passar a oferecer serviços, muitas vezes serviços precários. O mesmo aconteceu no rust-belt americano.
Chegados aqui, é-nos dado assistir experimentalmente à proletarização das classes médias, numa reedição da “teoria apocalíptica” de Marx (que Leão XIII subscrevia no preâmbulo da Rerum Novarum), rumo a um Brave New World em que as classes dirigentes, transformadas em castas hereditárias, vão vivendo numa bolha, enquanto aumenta o número dos super-ricos e dos super-pobres.
Em PortugalEm Portugal – em modo modesto, reconheça-se – caminhamos para este admirável mundo de hoje desde o Thermidor do 25 de Novembro que veio pôr termo ao “terror gonçalvista”, com o Centrão a alternar no poder – mais à direita com o PSD, mais à esquerda com o PS – mas a perpetuar-se, em bloco, no “aparelho”, progressivamente insensibilizado e dissociado do “povo”. Nisto seguimos o resto do mundo euroamericano. Como, pelos vistos, também começamos a segui-lo na reacção ao que se foi transformando numa bolha.
Não há acrobacia interpretativa dos catedráticos do comentário que consiga iludir o facto de que em Portugal, no Domingo, se fez história: os eleitores dos partidos da Esquerda, moderada ou radical, não chegaram a um terço dos votantes – do PS ao PAN, passando pelo Livre, o novo berloque da Esquerda que, com uma subida de 4 para 6 deputados, mantém viva a fé progressista não se sabe bem em quê. Mais significativa ainda foi a “geografia do voto”, com a direita nacional popular ou populista a tomar de assalto os antigos bastiões comunistas e socialistas, centros nevrálgicos onde costumava estar o povo, o bom povo, e onde agora estão… “os fascistas”.
A própria “direita moderada” (que há bem pouco tempo era a “a direita fascista”) conseguiu mais votos que toda a esquerda junta, e o velho Centrão, a soma AD-PS, que quase sempre ultrapassou os 70%, ficou agora pouco acima dos 50%.
Apesar da campanha dos media, que ganha foros de uma guerra de classe contra os “bárbaros” travada com galhardia pelos “civilizados” – quase todos repetidores da cartilha dos liberais do marcelismo, dominantes na opinião publicada em Portugal, não há 50 mas há quase 60 anos –, a direita radical cresce. E cresce, apesar da convergência hostil da “opinião de referência” e das próprias debilidades.
Que fazer?Este fenómeno reactivo responde a uma crise geral do sistema de valores e de instituições do chamado Ocidente, onde se tem vindo a salgar com sementes de desconstrução social um já indigesto globalismo político-económico, agravando o fosso entre uma elite de “iluminados” e um povo de “bárbaros”.
Sentindo o perigo para a sua hegemonia e para os seus privilégios – pequenos, médios ou grandes – as oligarquias democráticas, na América e na Europa, tendem a não querer sair da cegueira que as impede de ver o óbvio para agir em conformidade. Que fazer, então?
Perante o “perigo fascista” passa-se a “métodos fascistas”: o povo está a votar mal, está enganado ou a deixar-se enganar, quer voltar à Idade Média ou mesmo às cavernas e chamar-lhe modernidade?… Então, anulem-se eleições, como na Roménia; proíbam-se políticos de concorrer, como Marine Le Pen ou, idealmente, Trump; ilegalizem-se partidos, alegando, por exemplo, “fascismo”, mesmo que neles tenha votado um quarto dos eleitores.
A alternativa para os “partidos do sistema”, seria, reconhecendo democraticamente o sucesso dos “populistas” – um sucesso capaz de sobreviver a todas as debilidades, vulnerabilidades e pecados que lhes apontam –, procurar perceber se nas razões desse sucesso não pesarão as palavras, actos e omissões de quem está há meio século no poder.
Um pequeno exercício de auto-crítica nunca fez mal a ninguém.
observador